
Quem passa por Fábio Mello Fontes, de 85 anos, pela orla da praia de Santos talvez não imagine que ele tem uma profissão de alto risco: há 56 anos ele atua como prático nos portos do litoral paulista e já manobrou 3 mil navios. Atualmente Fontes, como é conhecido, é o presidente da Praticagem de São Paulo que atende os portos de Santos e São Sebastião.
Os práticos são responsáveis por “estacionar” os navios, auxiliando os comandantes das embarcações a entrar e sair dos portos. Eles embarcam por meio de uma lancha no navio em movimento, a partir de uma escada estendida na lateral da embarcação.O canal do Porto de Santos, o maior do hemisfério sul, é estreito e relativamente raso, com aproximadamente 15,50 metros de calado - que é a profundidade que um navio pode atingir.
A trajetória do prático mais velho em atividade começou profissionalmente em fevereiro de 1969, mas a paixão de Fontes pelo mundo marítimo começou ainda na infância. “Aos 10 anos eu já sentia uma atração indescritível pelos navios cargueiros em geral. Quando pela primeira vez vi navios passando na Ponta da Praia, perto da avenida, passeando com meu pai, nunca mais tive paz. Só pensava naquilo. Ao ficar um pouco maior, passei a ir sozinho, de bicicleta, ao mesmo lugar, para ficar vendo aqueles navios”, relembra o prático em entrevista ao iG Baixada Santista.
Em 1958 Fontes ingressou na Escola de Marinha Mercante do Rio de Janeiro, curso fundamental para ser oficial de náutica e para ser comandante de navio. “Embarquei no meu primeiro navio em janeiro de 1961. Nesses anos seguintes viajei quase que sem parar. Casei em outubro de 1961 e tive três filhos. Até 1968 me reparti entre a família e os navios, mas percebi que desejava permanecer mais perto da família, pois ficava muito ausente devido às longas e demoradas viagens”. Nesse momento Fontes se dedicou a outro processo seletivo e a uma nova profissão.

“Desembarquei e vim estudar na casa dos meus pais em Santos. Disciplina rígida e quinze horas de estudo todo dia, cronometradas. Todos os dias de abril de 1968 até o dia dez de janeiro de 1969, eu estudei quinze horas: sábados, domingos e feriados, Natal e Ano Novo”, conta. O esforço valeu a pena e Fontes foi aprovado em primeiro lugar para uma das quatro vagas disputadas por 600 candidatos. “Essa fase de preparação para enfrentar o Processo Seletivo da Marinha, foi o maior desafio, até hoje. Pelo imenso sacrifício, passei a dar muito valor à minha nova profissão: prático do porto de Santos”, completa.
Dia a dia da profissão de um prático no Porto de Santos
A profissão de prático é privada, mas a fiscalização e regulamentação do trabalho é feita pela Autoridade Marítima Brasileira, a Marinha do Brasil, que outorga a responsabilidade à sua Diretoria de Portos e Costas. Na Praticagem de São Paulo, que abrange os portos de Santos e São Sebastião, atuam 63 práticos em um sistema chamado de 24/7, com jornada de trabalho de 8 horas por dia. A atividade é feita 24 horas por dias, todos os dias da semana, sem pausa para feriados, com cerca de 37 manobras diárias
“Ao longo de um ano, todos os práticos efetuam aproximadamente o mesmo número de manobras, obedecendo a justa regra do Rodízio Único. Assim, todos os profissionais da área se mantêm uniformemente habilitados”, explica Fontes. O prático está em seu oitavo mandato como presidente da Praticagem de São Paulo, conhecida como Santos Pilot.
O idioma mundial obrigatório para os práticos é o inglês, definido pela International Maritime Organization (IMO), órgão da ONU, responsável pela regulamentação do transporte marítimo. Outra regra internacional é que toda manobra seja gravada e filmada em vídeo, para o caso de acidente, facilitar a investigação. “Como as manobras são mais ou menos repetitivas, aprendi a manobrar em todos os idiomas menos chinês e japonês, antes da atual norma entrar em vigor”, explica.

Quando Fábio iniciou o trabalho no cais santista, os navios tinham, em média, 140 metros de comprimento. Atualmente eles chegam a 366 metros, que equivale a três campos de futebol como a Vila Belmiro, mais uma piscina olímpica e um metro de largura.
“Não posso dizer que as manobras sejam difíceis. Já o foram nos primeiros anos pois os rebocadores eram precários, os navios bem menores e não havia rádio e a comunicação prático-rebocadores era sonora e binária e só dizia “sim” e “não”, o que tornava tudo complicado. Hoje a fantástica tecnologia embarcada introduziu mais segurança em nosso ofício, mesmo com o grande aumento de porte dos navios”, relata o prático que já fez cerca de 30 mil manobras para atracar e desatracar navios.
O trabalho dos profissionais consiste em assessorar os comandantes dos milhares de navios que entram nos portos em todo o mundo. “Na verdade, o prático acaba executando as manobras e ao lado do comandante trocam intensas informações ao longo do trajeto. O ambiente é quase sempre camarada. Até reconheço um certo glamour na minha atividade profissional”, comenta Fontes em entrevista ao iG Baixada Santista.

Manobrando navio no Porto de Santos
Devido ao alto risco da profissão, já que uma manobra errada pode causar problemas para as comunidades que vivem em meio aos portos, ao meio ambiente e também financeira. “Nossos práticos passam por treinamento intensivo em centros de excelência nos Estados Unidos, França, Polônia e Panamá. A cada cinco anos fazemos um curso obrigatório de reciclagem e atualização no Rio de Janeiro. Quando surge um novo modelo de navio, fazemos treinamento nos simuladores da USP-Poli em seu Tanque de Provas Numérico, um centro de excelência no Brasil”, explica.
Manobra com presidente da República embarcado
Entre tempestades e mar agitado, a manobra que mais causou preocupação ao prático mais experiente do mundo em atividade foi a presença ilustre de um presidente da República e uma comitiva de autoridades.
“O navio que mais me causou alguma preocupação foi o porta-aviões São Paulo, no dia em que o Presidente da República e todo seu Ministério estavam a bordo. Até conversei bastante com o então presidente Fernando Henrique Cardoso, durante a manobra, foi muito interessante”, relembra. Fonte manobrou o gigante da Marinha do Brasil em outras oportunidades.
Acidente e aposentadoria da categoria
Fontes explicou ao iG Baixada Santista que na regra brasileira não existe compulsoriedade de aposentadoria, por se tratar de uma atividade privada. Após os 60 anos de idade, o prático é obrigado a passar por uma completa Junta Médica, todo ano e no mesmo mês, e a validade do exame é de um ano. Antes dos 60 anos, esta inspeção de saúde, que segue critérios rígidos estabelecidos pela Autoridade do setor, é obrigatória a cada três anos para todos os práticos brasileiros.

Apesar de toda a experiência ao longo dos 56 anos de praticagem, Fábio já sofreu quatro quedas, a última em abril de 2024.
“Caí no mar, por um descuido meu, talvez por excesso de confiança. A escada de quebra-peito estava impecável, a lancha se aproximou corretamente. Eu “dei o bote” sobre a escada, antes da hora e acabei indo para o mar. O colete inflou instantaneamente e o resgate demorou uns dez minutos. Com roupa molhada mandei tocar para o navio e embarquei com frio mesmo. A queda foi em um domingo de madrugada, por volta da 1 hora. Cheguei em casa após a manobra, às 4h15”, relembra.
A idade não foi um fator para a queda, aponta o prático. “Veja que caí com roupa seca e embarquei todo molhado. Por sorte era um navio estrangeiro com suas escadas maravilhosas. Se fosse um navio brasileiro, ainda teria de escalar na pior escada de quebra-peito do mundo, mesmo certificada”, complementa.
Fontes disse ainda que esta é uma profissão de risco, e no mundo temos uma média histórica de duas mortes de práticos anualmente, mas já foram registradas até quatro mortes em um mesmo ano.
Homenagens e medalhas
No último dia 16 de janeiro Fábio Fontes foi surpreendido pelos colegas da Praticagem de São Paulo. Durante a reinauguração da estação da instituição, a ponte que é utilizada para que os práticos possam embarcar nas lanchas que dão acesso aos navios, foi homenageado.

A Ponte dos Práticos, que fica em Santos, agora tem o nome de Ponte Fábio Mello Fontes. A solenidade que revelou o novo nome da ponte ocorreu com a presença da diretoria da Praticagem e os familiares de Fontes.
“Fui honrado pelos meus colegas, que batizaram nossa ponte de embarque com o meu nome. Tudo aconteceu em uma surpreendente e emocionante solenidade,com foguetório, apitos de navio e lanchas, discursos e muita emoção. Fiquei atônito. Não me considero merecedor da homenagem, mas talvez seja resultado do meu capricho pessoal e entusiasmo em tudo o que faço na profissão, além de estar exercendo meu oitavo mandato, de dois anos cada, como presidente da casa”.
Ao longo de sua trajetória, Fontes recebeu duas condecorações da Marinha do Brasil, a medalha da Ordem do Mérito Tamandaré e da Ordem do Mérito Naval.